J. R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 22 de maio de 2024
O Supremo Tribunal Federal, de um desvario aqui a um disparate ali, vai oferecendo ao mundo uma doutrina até hoje desconhecida nos registros do Direito universal.
É a aplicação da justiça através do controle remoto.
Como nos equipamentos de televisão, o ministro encarregado de tomar esta ou aquela decisão aciona a tecla “desliga” sobre os fatos que possam estar em desacordo com a sentença que ele quer dar.
O efeito é exatamente o mesmo que se observa nas telas da TV: fica tudo preto, a imagem e as vozes desaparecem e a realidade que existia na sua frente, até aquele instante, passa a não existir mais.
É o que o STF tem feito com empenho cada vez mais sistemático.
Sempre que querem atender aos seus desejos, acionam a caneta que o Estado brasileiro lhes dá e anulam coisas que já aconteceram na vida real — e que, pelas regras gerais da lógica, deveriam levar à uma decisão oposta a aquela que decidiram tomar.
O ministro Dias Toffoli, pelo que parece e pelos despachos que dá, está sendo o grande cérebro por trás desta doutrina.
Por sua própria conta, ou a pedidos, é o que mais tem utilizado o controle remoto para apagar quaisquer acontecimentos materiais que obrigariam um magistrado a decidir desta ou daquela forma.
Como o cidadão que desliga a TV quando não quer ver mais o programa, Toffoli acaba de sumir de um golpe só com todas as provas e todos os processos contra o empresário Marcelo Odebrecht — o condenado-estrela, pelo crime de corrupção ativa, da Operação Lava Jato.
Já tinha, pouco tempo atrás, tomado a decisão de perdoar a construtora Odebrecht e o grupo industrial J&F do pagamento de multas somando por volta de R$ 15 bilhões — penalidades que os seus diretores tinham se comprometido a pagar para não serem presos por corrupção.
Não deu para entender nada.
O ministro, é óbvio, não forneceu até hoje uma única explicação coerente para fazer o que fez — aliás, eles nunca dão explicação nenhuma.
O fato é que os magnatas nem foram para a cadeia e nem pagaram a multa.
Agora, com a anulação de todos os processos contra Marcelo Odebrecht, o STF faz mais um avanço histórico:
A Justiça brasileira de 2024, através de Toffoli, considera oficialmente que crimes provados por evidências físicas, pela devolução de dinheiro roubado e pela confissão espontânea do próprio réu, assistido por todos os advogados garantistas do mundo, não existiram.
Tecnicamente, com base em decisões como essa, qualquer crime cometido no território nacional pode a partir de hoje receber um certificado de “não-existência”.
Não se aconselha a ninguém, naturalmente, fazer essa experiência consigo mesmo.
A doutrina do controle remoto tem um outro fundamento essencial: não se aplica segundo o crime julgado, mas segundo o nome que aparece na capa do processo.
O nome “Odebrecht” funciona.
Outros nomes funcionam.
Se o sujeito não tem um nome “validado”, sai de baixo.
Se for acusado, por exemplo, de dar “golpe de Estado” com o uso de estilingues, vai pegar 17 anos de reclusão. “Nome inválido”, dirá o STF.
A biografia de Toffoli
O ministro Toffoli está construindo para si próprio uma biografia sem precedentes na história do Judiciário brasileiro.
Arrasta, junto com ela, todo o STF.
Recentemente, quando anulou as multas da Odebrecht e J&F, teve o seu nome citado nove vezes num mesmo relatório da Transparência Internacional sobre corrupção no Brasil.
Foi citado oficialmente por Marcelo Odebrecht, em depoimento às autoridades do MP, como o “amigo do amigo do meu pai” — sendo seu pai o empresário Emílio Odebrecht e o amigo o atual presidente da República.
No arrastão em favor da família e de sua empresa, foi declarado inexistente o que talvez tenha sido o aparelho de corrupção mais explícito da história mundial da roubalheira:
O “Departamento de Operações Estruturadas” da Odebrecht, montado para operacionalizar o pagamento de subornos e provido de diretores, funcionários, computadores, planilhas e tudo o mais.